CAPÍTULO 2
O Nosso Sítio e o Sr. Wynne
O pomar, a horta e a lavoura do vovô estavam no mesmo cercado. As macieiras, groselhas, etc. tinham o seu próprio território. Da mesma forma as batatas, os feijões, ervilhas, alfaces, radiches, nabos, couves, beterrabas, etc. No entretanto, eram bons vizinhos. Conheciam seus limites territoriais e viviam em paz.
A horta merecia atenção de meu avô e do seu ajudante, Sr. Wynne. Ela exigia o afofamento da terra, a adubação, plantio contínuo, capinagem, replantio, eliminação das pragas. O pomar era, sem suscetibilidades da sua parte, menos trabalhado. Pulverizações e podas e eliminação de ninho de parasitas, quando ameaçavam causar prejuízos. E a lavoura, que proporcionava generosas colheitas de trevo e do doce capim Thimothy, recebia ainda menos trabalho de retorno. Quando muito, algumas cargas de carrinho de mão de esterco de gado apanhado no piquete, ao lado do celeiro. O esterco de galinha era reservado para a horta, em razão da sua maior concentração de nitrogênio. Não era espalhado nos canteiros, mas aplicado, à conta certa, em cada cova, inteligente economia da boa gente da Nova Inglaterra.
Era de admirar como podiam sair produtos tão excelentes da terra pedregosa daquela horta. Só algumas batatas já seriam o bastante para esperar-se dela. No entanto, colhíamos ali viçosas e belas flores de pêssegos, lindas flores de Herbon, folhudas rosas precoces e, até, algumas rosas Burbank. O velho Sr. Wynne ocupava todo o espaço que lhe era reservado para o plantio de batatas – “taties”, como ele dizia. Ele tinha uma grande família para alimentar. No outono ele fazia a colheita e a transportava, no carrinho de mão, para casa.
O velho era meu grande amigo. Costumava dizer que eu estava me tornando um meninão. Quando eu perguntava:
– De que tamanho, Sr. Wynne?
– Da altura do joelho de um gafanhoto e com o peso de dois quilos menos que um chapéu velho de palha, respondia ele. Já estava curvado pela idade e costumava sentar-se no carrinho de mão para descansar e aproveitar uma cachimbada. Frequentemente eu ficava com ele, sentado num dos braços do carrinho admirando-lhe o rito de encher o cachimbo, condensar o fumo no fornilho, riscar o fósforo e acender, chupando amorosamente a fumaça. Nesses momentos eu sabia que era bem-vindo.
Às vezes fumava em silêncio, meditando de olhar perdido. Outras vezes conversava naturalmente, com voz grave, no seu jargão irlandês. Um dia perguntei-lhe porque falava de modo tão engraçado e ele respondeu que quem falava engraçado era eu e que, na Irlanda, ninguém me entenderia. Quando perguntei porque plantava tanta batata, respondeu-me que era porque gostava muito de conversar com as fadas que moravam no interior das “taties”. Chegava a mostrar-me as fadas, mas, em verdade, nunca as vi.
Mas, na horta havia muita coisa interessante que eu podia ver durante a estação produtiva. Logo no início da primavera as alfaces e as radiches começavam a germinar e surgir da terra, anunciando quão saborosas seriam. As ervilhas anunciavam a sua subida pelas estacas colocadas por vovô; também, os cipós das vagens anunciavam o seu enrolamento nas varas fincadas pelo Sr. Wynne, em longas alas, através da horta. As gerações anteriores dessas vagens haviam subido pelas mesmas varetas, frutificado, amadurecido as suas sementes e, após, seguido o seu caminho para a grande panela de ferro, onde enfeitaram, perfumaram e temperaram gostosas costeletas com as quais nos deliciamos, servidas por Délia.
Gente de outras partes do mundo pode admirar-se de como um humilde feijão tem mantido prestigio e eficiência, durante gerações, como matéria prima principal para os jantares servidos com bolo de milho, nas mesas aristocráticas de Boston. Mas não se admiraria se, por uma vezinha só, tivesse tido o privilégio de comer feijão com pão de centeio a moda da gente da Nova Inglaterra.
O feijão servido em nossa mesa teria perdido muito do seu sabor se vovó o houvesse comprado numa cadeia de lojas. O nosso feijão era produzido com o suor do Sr. Wynne e o de vovô. Por isso tinha uma doçura peculiar.
Em verdade, vovô e o Sr. Wynne pareciam estar presentes em todos os comestíveis produzidos em nosso quintal. As batatas, couves, feijões, cebolas, nabos, beterrabas, tudo, afinal, nos parecia de melhor qualidade quando considerávamos provirem do nosso quintal. O leite que tomávamos, os ovos que vovô colhia no galinheiro, os frangos empertigados que se exibiam, orgulhosos, no terreiro, tudo aquilo era parte da nossa vida.
Vivíamos em comunhão com a natureza; éramos parcela do universo e da espontânea existência de todas as coisas. Nossas vidas eram mais plenas do que poderiam ser em quaisquer outras circunstâncias.
O Sr. Wynne tinha um sapo de estimação que saltava à sua frente, abocanhando moscas e outros insetos, e o velho tomava extremo cuidado para não pisá-lo ou feri-lo com a enxada. Parecia que aquele sapo tinha tanta afinidade com o Sr. Wynne que não podia estar longe dele. No final do outono ele desaparecia e ao início da primavera retornava, inconsciente de que passara alguns meses parecendo ser apenas um sujo e feio pedaço de gelo.
O Sr. Wynne, com o seu carrinho de mão, seu cachimbo, suas batatas, seu sapo e suas fadas era uma criatura adorável para um menino. Ainda mais que era pai dos dois melhores lutadores da escola, Mike e Jim e, principalmente, de Délia, nossa criadinha.
Nosso jardim era, não há que negar, pedregoso, mormente na visão de gente oriunda de solos mais bem aquinhoados. Certa vez, quando eu o elogiava, cheio de orgulho, para um primo que viera do Oeste, ele desapontou-me afirmando rude:
– Não me faça de tolo! Já vi o que é esse monte de pedras!
A vaca era a beneficiária principal do pasto e tinha o seu cardápio melhorado com sementes forrageiras cozidas. Aliás, nós, crianças, também as comíamos.
Em agosto, quando o tempo permitia, fazíamos feno. Nenhuma touceirazinha de capim, no pomar ou no quintal, escapava da foice do velho Wynne e quando o feno estava bem curado e sem impurezas, era empacotado e depositado no sótão do estábulo, de onde facilmente poderia ser transferido, em pequenas porções para a manjedoura da vaca, durante o inverno.
Nossa propriedade se estendia para oeste entre a do Sr. Arnold Hill, ao sul, a de Alfred Hull, ao norte, que tinham suas peculiaridades. Foi na fazenda do Sr. Hill que vi o único mangual[1] em operação, durante toda a minha vida. Era o processo usado para descascar cereais.
Afonso Stafford (pai de Fay, que mais tarde se tornou meu grande amigo) gerenciava a Fazenda Hull e fazia algum trabalho leve, tal como gradear o feno com um ancinho mecânico. O velho Nate Remington, que trabalhava há muitos anos na fazenda, fazia o resto do trabalho auxiliado por uma parelha de cavalos: Bobbie e Fannie.
O celeiro da Fazenda Hull era muito espaçoso. Oferecia refúgio nos dias de chuva e ainda sobrava espaço. Quando não tínhamos ideia para outra traquinada, íamos provocar o velho Nate, que nos considerava uns diabos. Certa vez o pusemos tão enraivecido que ele ameaçou:
– Não sei onde estou que não lhes dou umas palmadas! Se ele tivesse podido alcançar-nos, não tenho dúvidas que cumpriria a sua intenção.
O celeiro de sótão, com estábulos para vacas, cavalos, galinheiro, lenheiro e depósito de carvão com defumador de carne, era, no verão, um lugar excelente para que nós, a gurizada, organizássemos as nossas imitações de trapezistas, equilibristas na corda bamba, atiradores de facas, navegadores em balões, palhaços e outras artes dos burlantins de circo. Fazíamos, também, imitações de galerias de quadros, nos dias de chuva. Da minha parte, até hoje gosto muito de colecionar quadros.
A posse de uma vaca obriga a pequenos serviços no sítio. Minha avó, que não confiava muito nos outros, era quem fazia a manteiga que consumíamos. O leite era colocado em vasilhas de boca larga, que iam para a despensa até o dia seguinte. Pela manhã ela aquecia o leite até que a gordura subisse à superfície, formando uma camada pastosa – a nata. Passada o leite pela desnatadeira, a nata passava à batedeira. Então vovô participava da operação, contribuindo com a força motora para bater a nata e transformá-la em manteiga.
O creme Devonshire, justificadamente famoso da Nova Inglaterra, é, sem tirar nem pôr, o creme que vovó preparava do leite da nossa vaca. Aqueles que têm tido o privilégio de saborear, na Nova Inglaterra, morangos com creme Devonshire, não necessitam de explicação: daquele creme é que vovó fazia a nossa manteiga.
Conseguíamos, ainda considerável colheita de malmequeres, de amores-perfeitos, os quais alcançavam bom preço no mercado, não só pela beleza como pela virtude de informarem os jovens apaixonados, se o amor que tinham era ou não correspondido. Arrancando a primeira pétala do malmequer pronunciava-se: “malmequer”. Ao arrancar a segunda pétala: “bem-me-quer” e assim por diante até a última pétala, que confirmava ou negava a correspondência do afeto do bem-amado.
Há umas florezinhas amarelas, que também indicam correspondência de amores masculinos. Se um rapaz quer saber se sua namorada gosta ou não de manteiga, por exemplo, aperta a flor embaixo do queixo. Se o queixo dela ficar manchado é porque a menina gosta de manteiga. Confesso que tentei esse processo muitas vezes, mas não me lembro de haver tido a oportunidade de verificar se os queixos das meninas haviam ficado amarelos. Ah! Florezinhas! Florezinhas!… Minhas companheiras das mais doces e inocentes fraudes, pudéssemos nós nos encontrar e conviver novamente!
NOTA:
[1] MANGUAL – aparelho tosco que serve para descascar cereais por meio de batidas – malho. Compõe-se de dois paus ligados por tiras de couro. O pau mais comprido é o “cabo” e o mais curto o “malho”.
