CAPÍTULO 4
Tipos Inesquecíveis
Segundo testemunhas mais ou menos confiáveis, o incêndio que consumiu a casa e a loja de vovô ocorreu assim: a loja de vovô, ao lado da moradia, tinha sua quota de “paus-d’água” que se concentrava ali à boca da noite e, de quando em quando, durante o dia. Bate-papo ordinário era a agenda invariável dessas reuniões a que os desocupados do lugar vinham, sempre, estimular com as suas presenças. Era o que, em gíria, se costuma dizer, conversa de encher colchão. Palavrório baixo, entremeado de palpites chulos e gargalhadas roucas eram a regra. Quando se esgotavam as vítimas da maledicência, eles trocavam xingações entre si.
As estórias eram repetidas, variando apenas as personagens, e não tinham nenhuma originalidade. Só acidentalmente – e com desgosto – havia comentários sobre acontecimentos reais. As anedotas espúrias eram a matéria preferida. E quando alguma delas não provocava risos no grupo, o próprio relator irrompia numa ruidosa gargalhada que, de certo modo, encobria o desapontamento.
O Sr. Asa Webster, velho caixeiro de vovô, era um tipo excêntrico. Sob nenhuma condição riria dos seus próprios ditos. Era tão empertigado que chegava a curvar-se para trás. Quando contava suas mentiras, compunha a cara de mau: lábios apertados e olhar lúgubre, que se agravavam se se suspeitasse que algum dos ouvintes estava duvidando da sua veracidade.
Asa Webster era considerado o campeão dos mentirosos de Wallingford. Tenho a impressão que ele se orgulhava desse título. Diziam-no professor e improvisador de mentiras e que tinha mais discípulos do que Platão e Sócrates tiveram, quando ensinavam os seus sistemas filosóficos. Wallingford fora, pois, a Atenas dos mentirosos. Para o ministério das aulas e prática da arte era escolhida a loja de vovô onde o mestre Asa imperava. Como as grandes artistas, este era temperamental e não tolerava rivalidades. Sempre que a sua supremacia estivesse ameaçada, ele mentia com redobrada criatividade, até eliminar o concorrente. Num certo dia ele exagerou tanto que a loja e a casa se incendiaram.
Quando lhe perguntaram como havia escapado do incêndio, diziam, ele respondeu que, calmamente, vestiu o fraque, colocou a sua cartola-chaminé, deu alguns passos para trás, para fazer espaço e tomar velocidade e, então, jogou-se, através das chamas, pela vidraça da janela. Um incrédulo perguntou:
– De que tamanho era o vidro, Webster?
– Sete por nove polegadas! respondeu prontamente.
Vovô não reconstruiu a loja, mas Asa Webster abriu, do lado oposto da rua, uma própria e a seu gosto. Era o protótipo das atuais lojas “cinco e dez centavos”. A diferença estava na qualidade da clientela. A sua era só de meninos, cuja capacidade máxima de dispêndio era de um centavo.
Ao estabelecer-se, Webster não se acovardou com a terrível concorrência que teria de enfrentar. Ao lado do bazar e da loja de ferragens havia um sem número de lojinhas especializadas, como a sua: Luther Tower negociava com doces, confeitos e mel; George Tower vendia limões, biscoitos e arenque seco; George Edgerton especializou-se em refrigerantes, licores e nozes; Obadiah Makepeace preferiu trabalhar com uma linha especial de utilidades domésticas.
De maneira geral, os negociantes eram gente muito boa. Obadiah, como vendedor era, realmente, excepcional. Mesmo que no seu estoque não houvesse a mercadoria desejada, ele induzia o freguês a comprar outra qualquer, semelhante ou não. Contam que certo dia lhe apareceu um freguês desejando comprar querosene e Obadiah, a força de insistir, conseguiu vender-lhe, em substituição, melaço de New Orleans.
Obadiah costumava curvar-se sacudindo as mãos diante do freguês. Pretendia que esses salamaleques tivessem efeitos hipnóticos e levassem o freguês a comprar o que ele lhe oferecesse. Homem, mulher ou criança que entrasse no seu botequim com uma moeda era instado a gastá-la, comprando-lhe o que quer que fosse.
Esse homem tão ambicioso foi, lamentavelmente, acometido de uma moléstia semelhante à epilepsia e entrou em rápida e profunda decadência física. Para nós, meninos, a transformação de Obadiah era incompreensível.
Lembro-me de haver-lhe assistido perseguir uma mulher respeitável num dia de intenso calor. A mulher gorda e pesada, corria muito mais do que aparentava ser capaz, sacudindo as banhas e gritando de medo. A mim e aos meus companheiros o espetáculo, ao invés de causar surpresa, era profundamente engraçado. Embora Angelina levasse pequena vantagem, alguns malvados dentre nós, gritavam, torcendo:
– Vamos Obadiah! Pega ela!
E outros ao contrário:
– Corra, gorducha! Sacuda essas banhas por amor a Mike!
Como naquela época ainda não haviam inventado a caixa registradora, não tenho base para avaliar a média diária do movimento comercial daquelas lojinhas em Wallingford. Nos das de muita venda, talvez o movimento chegasse a um dólar… dois, no máximo.
Para ilustrar a liberalidade ocasional dos jovens de Wallingford, posso citar o episódio, a que assisti, de um jovem fazendeiro de Sugar Hill na loja de George Tower, o fornecedor de biscoitos, limões e peixe seco. O moço, num assomo de arrogância, gabou-se:
– Hoje, dia da independência dos Estados Unidos, posso comemorar sem importar-me com o que isso me custe! Passe-me mais um desses peixinhos!
E George, em aparente aprovação àquela liberalidade nascida de sentimento patriótico, recolheu mais uma moeda de um centavo à caixa de biscoitos que fazia o papel de gaveta do caixa da loja.
Avaliadas em termos de dinheiro as pequenas lojas de Wallingford nada tinham de valiosas, mas como força social eram de valor inestimável. Elas ocupavam os seus proprietários. Atender as lojas era muito mais saudável do que ficar em casa irritando a família e, pessoalmente, se aborrecendo. Tinham, também, a serventia de reunir outros velhos desocupados que, assim, se distraiam e matavam o tempo. O trabalho de atender essas lojas, é fácil de imaginar, não era nenhum sacrifício. George Edgerton, por exemplo, permanecia quase o dia inteiro sentado e se acontecia o inesperado de aparecer algum freguês, George o fazia esperar até haver-se recuperado da surpresa e do desgosto de ter de recebê-lo e servi-lo.
O tempo nada significava para tais comerciantes. Suas lojas eram ligadas às residências e eles podiam ser chamados a qualquer hora do da ou da noite. Nenhum deles, que aspirasse criar um centro social, teria de planeja-lo e esperar por isso. Era só dispor algumas cadeiras em torno de um foguinho baixo, com uma razoável escarradeira próxima, e teria, de pronto, um grupo de bons mascadores de fumo hábeis no cuspir à distância, orgulhosos dessa habilidade.
Como as lojas eram diversas havia liberdade de escolha para os fregueses. Lee Simonds, por exemplo era leal frequentador da loja de Edgerton, uma drogaria singular porque não tinha drogas; Alonzo Canfield não desgrudava da de Sabin, que negociava com latas e ferragens.
Alonzo era homem de pouquíssimas palavras. Na verdade, não me lembro de havê-lo visto falar, a não ser quando alguém o cumprimentava:
– Como vai você, Lon?
Ele respondia num resmungo:
– Amolado!
E fazia uma careta, seguida de tosse provocada. Sempre tive a impressão de que Lon desejava ardentemente pôr para fora as suas amarguras e não podia fazê-lo. Era como se ele tivesse, dentro de si, uma enorme carga de pólvora e lhe faltasse a espoleta para incendiá-la. Se ele, ao menos aprendesse a mascar fumo e cuspir, a gente poderia vê-lo completar as ameaças de manifestar se, como costumava. Então ele cuspiria ao invés de pigarrear e jamais falar.
Meu avô frequentava unicamente a loja de Webster. Ephrain Hewlett era ligado à loja do seu filho, Danforth, de quem muito se orgulhava. Roz Sherman, um refinado preguiçoso, sempre acompanhado de seus cães famintos, mas leais, apesar de estarem sofrendo frequentes pontapés, preferia locais onde houvessem barricas. Os meninos faziam “via sacra” em quantos locais pudessem, colhendo informações e a sabedoria circulante: a farmácia de Calvin Townsend, a confeitaria de Luther Tower, o empório de George Tower, a loja de Ben Crapo, a fábrica de caixilhos e portas que recendia a resina de pinus, a mercearia de Harshie Ensign, os peixes secos de Obadiah e outras muitas.
Havia, ainda, a cavalariça de Charlie Claghorn, o moinho de William Ballou, a fábrica de queijos de Martin Williams, a fábrica de cangas, a fábrica de cidra, a marcenaria do perneta Sr. Pratt, onde se fabricavam elegantes pijamas de madeira (também chamados esquifes) que garantiam o conforto e a satisfação dos usuários, a moradia de Johnnie Adair, a barbearia e sapataria do Sr. Jim Dolan, o estúdio fotográfico do Sr. Eddy, que era quem extraia os dentes dos meninos, o hotel Wallingford, gerido sucessivamente por Horácio Earle e Lyle Vance, as ferrarias de Joe Randal e do velho Clark, a loja ambulante de Jerome Hilliard e, por fim, a mais importante, a fábrica de ancinhos de Batcheller.
A sede inicial da fábrica de ancinhos dizem ser a primeira dos Estados Unidos, na sua especialidade. Por mais de um século foi conhecida por “a casa velha de pedras”. Sede de muitas indústrias, desde que foi usada pelos Batchellers. Quando a conheci era a fábrica de cangas. Mais tarde passou a ser “a sala de chá da Casa Velha de Pedras”, prestigiada e disputada pelos turistas que frequentam a rodovia Ethan Allen.
