CAPÍTULO 7
Rainúnculo, a Rainha do Pasto
Meu irmão Cecil ficava, de quando em quando, em dificuldades com a sua obrigação, que era a de levar e trazer a velha vaca, Rainúnculo, do pasto. Ele se esmerava nesse trabalho. Se me perguntassem qual a característica dominante do meu irmão Cecil, eu responderia prontamente que era a coragem. Bravura jamais lhe faltou. Levava a vida tirando tudo o quanto fosse possível de cada experiência e nunca recuou em face do perigo ou do desastre.
Muitos anos após os acontecimentos aqui relatados, Cecil, sofrendo dores pelo corpo, por doente que estava, teimava em afirmar aos parentes, que estava tudo bem. Se ele soube o que era medo nunca o disse. Uma das últimas coisas que disse a mim, antes de morrer, foi: “Podem dizer tudo de mim mas ninguém, jamais negará, com propriedade, que desfrutei a minha vida”. Palavras reais, da primeira à última sílaba!
De todos os meus pecados que foram muitos, o de que mais me arrependo foi o de bater em Cecil. Num dia de verão em Wallingford, numa explosão de raiva, arranquei-lhe o chapéu e esmurrei-o no rosto. Ele ficou ressentido e humilhado. Seus olhos encheram-se de lágrimas mas não revidou. Fiquei profundamente envergonhado e daria todo o pouco que possuía para desfazer aquele gesto cruel. A cena, em visitando a minha memória por milhares de vezes e a cada vez que a recordo, sinto remorso.
Cecil assumira a condução da vaca Rainúnculo, do e ao pasto, embora ele, de vacas, só sabia o que aprendêramos na nossa curta permanência no oeste. Isto é, que produziam o leite que o leiteiro deixava atrás da nossa porta.
Por prevenção Cecil tomou um parceiro de tarefa. Não atinei. Porque talvez fosse para ter companhia.
De qualquer modo, coube-me essa honra, embora minha fé nas boas intenções da vaca estivesse abalada, pela presença dos chifres que ela trazia na cabeça, um fato não facilmente reconciliável com os ideais de paz na terra e boa vontade para com os meninos.
O resultado do nosso primeiro dia como condutores de Rainúnculo não foi muito positivo. Rainúnculo, com outras vacas alheias, resolveram entrar em disputas no corredor que levava ao pasto, o que criou uma confusão dos diabos. Por insinuação da Providência, alguém havia deixado uma espaçosa caixa. abandonada no corredor – um abrigo em caso de necessidade. Não esperei ordem de esconder-me na caixa, deixando a Cecil e mais aos outros meninos a tarefa de procurarem outras caixas ou de salvaram-se como pudessem, Do interior da minha fortaleza, eu assistia o estalar dos chifres e das cabeças, com alguma compostura, mas só abandonei as vantagens da minha posição estratégica, quando Cecil e os outros meninos me convenceram que a briga das vacas acabara e que elas haviam sido conduzidas ao pasto e a porteira, ao fim do corredor fora fechada.
Com este episódio inauspicioso, minha formação na ciência de conduta das vacas continuou, até que, mais tarde, cientifiquei-me das peculiaridades dela e passei a querer bem às vacas. Hoje, vacas me trazem reminiscências da infância e os quadros da vida bucólica do meio rural me agradam muito.
Rainúnculo era uma vaca Hereford, importada da Inglaterra. Proveio da raça respeitada como excelente produtora de carne e de leite. Para nós, ela estava destinada a produzir as duas especialidades. Era a maior de todas as outras, no pasto. Maior até do que a vaca de Jinny Conley, sua imediata em tamanho. As vacas dos vizinhos reconheciam as prioridades de que gozava Rainúnculo e permaneciam quietas e afastadas, quando alguém abria a porteira para que saíssem do pasto para a ordenha.
Quando Rainúnculo estava de terneiro novo, nos fornecia dois baldes de leite gordo, espumoso e de aroma agradavelmente doce. Tinha tantas virtudes que é difícil enumerá-las. A mais destacada e importante era a de nos pertencer, inteirinha… a boa e fiel Rainúnculo! Tivesse havido uma pesquisa de “quem é quem” nos estábulos e estou certo de que o nome de Rainúnculo estaria no primeiro lugar! Seu mugido parecia doce e musical aos meus ouvidos e se eu não a tivesse visto brigar, até vencer a vaca de Jimmy Conley para ostentar a supremacia no rebanho, eu não teria escrúpulos de dizer que era, em verdade, uma vaca cristã. Não que eu a acuse por lutar por seus direitos. Para falar a verdade eu até me vangloriei com a sua vitória e sempre fiz praça dela!
Eu tinha a impressão que Rainúnculo se sentia terrivelmente solitária, encerrada no seu pequenino estábulo durante os longos meses de inverno. Só havia uma pequenina janela por onde, se ela quisesse, poderia contemplar um pedacinho da terra toda coberta de neve. Mas, decerto, tinha a íntima satisfação de saber que o seu estábulo ficava ao lado sul do celeiro e que os ventos gelados, do polo norte, teriam uma parede grossa e alguns tabiques de excelente madeira roliça a atravessar, para atingir o seu abrigo. As galinhas e o seu guarda costas masculino, o galo, estavam sob a mesma cobertura. Elas cacarejavam, aparentemente orgulhosas, a cada ovo que punham, e o galo, dado a mandão, fazia o papel de despertador muito eficiente, quando vinha surgindo o dia.
Vovô era a visita regular pela manhã e a tarde, levando as rações de milho e recolhendo o leite e os ovos. Dias santos e feriados, para a vaquinha, nada significavam. Ela continuava a alimentar-se, a fornecer o leite e a ruminar. Talvez ela estivesse revivendo, com saudade, os dias de verão, em que passava no pasto com outras senhoras vacas e um senhor touro, imponente na sua pelagem fosca e brilhante. Ela teria lembranças boas e agradáveis da sua vivência de verão, como eu as tinha das nossas visitas e especialmente das meninas. Pelo jeito ela tinha uma tranqüila filosofia de vida.
Talvez Rainúnculo aproveitasse bem a sua janelinha. Uma das minhas distrações preferidas, durante as tempestades de neve, era pôr-me de joelhos diante duma das janelas da sala de estar, com o nariz achatado contra o vidro, olhando a neve cair e anotando os maiores flocos. Alguns deles, enormes, assombrando os congêneres menores. Eram tão diversos nos contornos, quão preguiçosamente caiam, Deus sabe de onde. Como eram silentes os seus voos e as suas aterrisagens e quão impecavelmente brancos eram eles!
Quando caiam os flocos aos milhões, eu imaginava que dentro em pouco nos cobririam mas vovó olhava e dizia: “Esta tempestade não demora a passar. Os grandes flocos são preguiçosos e não fazem muito dano. Os flocos pequenos é que são de respeito. Eles vão se empilhando uns sobre os outros, por dias e dias, até que desaparecem todos os caminhos”.
Outra sentença de vovô: “Hoje está tão frio que nem o sol derrete a neve dos nossos beirais”.
Vovô fazia, rotineiramente, a ordenha, mas não era muito eficiente. Fazia-o com uma só mão e, portanto, a sua performance era a de uma pessoa tocando piano só com a mão direita. Não encostava a cabeça no flanco da vaca como os mais hábeis ordenhadores. Sentava de corpo reto sobre um banquinho de uma só perna e segurava a vasilha com a mão esquerda. Nessa posição ele ficava exposto às chicotadas do rabo, quando havia moscas, as quais, frequentemente, lhe acertavam o pescoço. Vovô se chateava quando isso ocorria mas para nós, os dois meninos, era uma fonte de diversão.
Nosso celeiro era, muitas vezes, palco de cenas muito engraçadas. Certa noite quando vovô, no seu tamanhão, tentava fazer com que Jason, um terneiro meio crescido filho de Betty e neto de Rainúnculo, passasse para o terreiro, através de uma porteira baixa, foi encenado um drama. Jason, depois de rejeitar as adulações de vovô, resolveu, num repente, mudar de comportamento e investiu pela porta, levando vovô de roldão. Se Jason fosse um bezerro bem intencionado, podia ter previsto que seria difícil para vovô, homem alto, passar por uma porta baixa mas pareceu-me que ele não estava se importando muito com isso e eximiu-se da responsabilidade do que pudesse acontecer. Por outro lado, meu avô, gentleman, que era, fez o que devia fazer: no momento preciso baixou a cabeça, tão habilmente como qualquer boxeador que desvia um direto do adversário e tanto Jason como e1e se projetaram para fora. No terreiro, Jason parou tão precipitadamente como partira e, surpresas, tanto ele como meu avô, se defrontaram, em guarda contra qualquer eventualidade. Jamais, anteriormente, haviam se encarado em tais posições.
Na manhã seguinte, Cook, o açougueiro, levou Jason. A partir de então ele pode ter sido transformado em carne de vitela: castigo pela irreverência para com meu avô.
O pendor que eu sentia pelos bovinos levou-me, certa vez, às ilhas Channel dos mares britânicos, Jersey, Guernsey e Alderney, a fim de assistir à alimentação da aristocracia das vacas na própria origem. Lá me informaram que as raças do gado identificadas pelos nomes das ilhas são originárias das costas da Bretanha e desenvolvidas por monges pertencentes a dois mosteiros. Quando foram, os monges, banidos da França, levaram consigo alguns exemplares, que passaram a reproduzir-se nas três ilhas.
Na ilha de Guernsey só seis mil cabeças constituem a população total da raça. No entretanto, há, centenas de milhares de bovinos Guernsey espalhadas no mundo e a maioria está no USA. Pode ser gratificante, para os meus compatriotas, saber que Peterborough, no Estado de New Hampshire, é o centro de pesquisa da raça Guernsey e que o que se publica a respeito, naquela cidadezinha, é acatado em todo o mundo, mesmo na ilha donde provém a raça.
Sempre me pergunto por que só fazendeiros e leiteiros se interessam por bovinos. Muito se tem escrito sobre as virtudes de cães e cavalos mas pouca atenção tem ido creditada às características e personalidades das vacas. O único livro que conheço a respeito, destinado a leigos, é uma novela, “O Boi Estabulado” cujo autor é um escritor inglês. Ele comenta algumas das leis e regulamentos, aceitos como regras de conduta, na convivência entre bovinos. Durante uma viagem em automóvel, através de Wisconsin, passei uma noite na casa de um vaqueiro caprichoso que tinha um belo rebanho de Guernsey.
Era filho de imigrantes alemães e gostava muito do seu gado. Tanto que tomava a sua ducha matinal e barbeava-se num compartimento anexo ao imaculado estábulo das suas vacas. Um rádio ligado permitia-lhe ouvir música, durante as suas abluções. Fazia-o por prazer pessoal sem idéia de que os concertos da manhã poderiam agradar qualquer outra criatura, além dele. Um dia o rádio desarranjou-se e não houve música,. Isso o aborreceu um pouco mas preocupou-se de verdade ao constatar que as vacas se mostraram inquietas e reduziram a produção de leite até que fosse o rádio reparado e a música voltasse a ser ouvida, pela manhã.
Eu podia ter duvidado do relato do fazendeiro, se já não me houvessem contado, num distrito pastoril da Suíça, que nas fazendas em que os ordenhadores costumavam trabalhar assoviando, não se podiam empregar os ordenhadores que não soubessem assoviar.
Certa vez, tive uma tarde feliz, no interior de Montreux, apenas a 800 metros do centro de turismo. Foi como que recuar do século XX para a paz e a quietude de passadas gerações. Pequenas comunidades, em que os velhos podiam estar sentados confortavelmente em centros comunitários, onde os fazendeiros traziam suas vacas e seus cavalos de serviço. A meia milha distante, estava a aldeia com o depósito de distribuição de leite. Os sitiantes traziam ali o leite produzido por suas vacas, em latões, e vendiam-no no picado, aos fregueses, que se apresentassem munidos do própria vasilhame.
Na proximidade estavam um homem, um menino e um boi, trabalhando na colheita de mais ou menos meio acre de feno.
O ar estava impregnado da flagrância do capim recém cortado. Homens, mulheres e crianças desempenhavam as suas atividades alegremente, parecendo compenetradas e prazerosos, aspirando a serenidade do ambiente. A paz é tradicional na Suíça e porque não seria? Nada há mais impregnado de paz, do que o barulho do meio rural da Suíça, com as suas vacas serenas, tranquilas e lerdas.
Um americano meu amigo, cujo negócio é compra e venda de gado, contou-me que as vacas transferidas de uma para outra fazenda diminuem a produção de leite. Uma vaca Guernsey que ele vendera por um preço alto voltara à sua fazenda.. Ele afirmara a real produção de leite da vaca: vinte e três quilos por dia. Na fazenda do comprador ela passou a produzir apenas seis quilos. Foi desfeito o negócio. Passados alguns dias apenas, voltou ao normal produção e jamais foi vendida.
Essa atitude do americano lembra a dos hindus, que conservam as suas vacas, velhas como forem, até à morte e, então, dão-lhe enterro decente. Você, leitor, vai dizer que o hindu considera a vaca sagrada, por pura superstição. Por fim, lhe afirmo que nunca pude definir o nítido limite entre uma superstição e uma outra crença qualquer. Quanto à nossa Rainúnculo, tinha tantos atributos que nós, de crença puramente cristã, confessamos haver recebido, dela, muito mais do que lhe demos, pois o seu leite era quase um alimento completo. Com o produto do seu corpo, Rainúnculo, praticamente, me criou, como uma mãe cria um filho. Meus ossos e minha carne formaram se das suas dádivas. E o que ela recebeu, em troca? Uma ração de milho, diária, o capim que pastava, o feno da nossa chácara e o abrigo em que se protegia durante o inverno. E só.
Para um quadro que exprima bucolismo e sossego, não conheço outro igual a vacas no meio rural, pastando ou deitadas, tranquilas à sombra das árvores beirando o riacho, onde beberam a água fresca e murmurante. No seu doce paraíso, elas, com os olhos semicerrados, repousam, durante o calor do dia, com nada mais a pensar do que espantar as moscas e ruminar a grama há pouco pastada.
Quando penso, às vezes, que pode ser pieguice o que sinto, adotando o comportamento do gado doméstico como símbolo de sossego e tranquilidade, socorro-me das palavras do mais louvado naturalista da América, John Borroughs.
“Tudo o que se faz ou pensa a respeito do gado é justo e louvável. Seja considerando-o solto no campo, pastando as folhas tenras que escolhe, ou fechado nos estábulos, descansando. Há virtudes na vaca. Ela é a expressão da bondade, exala um cheiro que agrada, dá tranquilidade ao ambiente, com seu olhar sereno e bom, dá qualidade ao campo onde está presente. Dou mais valor a quem cuida das vacas do que ao burocrata que se afirma útil a nação. Onde está a vaca, ali é a Arcádia… Até onde alcança a sua influência, prevalece o contentamento, a humildade, a doçura e a harmonia”.
Nada sei quanto à sacralidade das vacas mas sei que sentiria novamente aquele calor doce de família feliz se vovô, vovó e Rainúnculo vierem me encontrar à hora da minha morte.
