CAPÍTULO 8
Foguinho, meu amigo
Quando menos se esperava a mansão Harris foi tumultuada pelo súbito aparecimento da nossa tia Sue que abraçou Cecil e eu e nos encheu de presentes: arcos e flechas, artefatos executados pelos índios, cestos de fibras e outras coisas que trouxe do Oeste. Depois veio a explicação: Tia Sue viuvara e se sentia desesperadamente solitária. Pedira para assumir a tutoria dos sobrinhos, mas papai sempre lhe frustrara as tentativas para tal. Em quase total desespero veio, pessoalmente, tentar seu intento junto a meus avós.
Tia Sue (Sra. Wesley Cavelle) era a irmã mais velha de minha mãe. Ficara viúva na guerra entre os Estados e, como não tinha filhos, interessou-se por assumir os filhos da irmã.
Depois de inúmeras discussões ela viu sua persistência compensada pela permissão de levar Cecil consigo para o oeste, mais ou menos próximo de onde estava mamãe, que conservava a casa, a duras penas, lecionando piano e tendo sob sua tutela a minha irmã Nina May. Foi combinada separação temporária mas tornou-se permanente, com algumas interrupções breves durante as reuniões da família em Cambridge, WY, e alguns dias em Fair Heaven, Vermont.
Eu continuava morando com meus avós em Wallingford, naquela aldeia adorável cercada de montanhas, que pediam para ser escaladas; colinas que, durante o inverno, exibiam sua alva nevada como que convidando a alegre juventude a deslizar nos trenós e, no verão, faziam ouvir o murmúrio dos seus riachos ligeiros onde as trutas tímidas, cruzando águas cristalinas, procuravam acoitar-se sob a saliência dos barrancos marginais; naquela aldeia adorável de arroios musicais e de lagos transparentes, onde o ar puro e gelado do inverno desliza no gelo como se fora com patins, virando e assobiando; onde, no verão, os meninos de corpos crestados ao sol, não tinham ressaibos de, embora molhando suas roupas, divertir-se nas águas transparentes e frias.
Ali seria a minha casa, um lar modelo de Nova Inglaterra: pleno de ordem, de asseio, de bondade, de solicitude e de bom viver. Que menino de sorte fui eu, o segundo filho de George e Cornélia Harris, neto de Henry e Clarissa Bryan e bisneto de Reuben e (Huguenot) Olive Chapelle Bryan.
Cecil caiu nas mãos de tia Sue, e Nina May permaneceu no caloroso seio maternal. Só havia eu para ser deixado com os velhos. Muita gente deve ter lamentado: “que pena! Os filhos de George Harris deveriam ter permanecido reunidos, juntos!” Não o quis o destino.
A coragem de mamãe, seu espírito de luta e o seu vigor físico deram-lhe a vitória sobre o handicap de ter sido a mais moça da sua família. Meu pai, ao contrário, de excepcional inteligência e primorosa educação, era desprovido de coragem, determinação e vigor físico. Para ele, o peso das exigências da vida era demasiado.
Depois que tia Sue levou Cecil, comecei a unir-me com um outro menino. Ele tinha os cabelos ruivos e estreitas afinidades comigo. Durante muitos anos de convivência íntima nunca tivemos um sério desentendimento. Estávamos sempre juntos nos bons e nos maus momentos. Quando eu merecia – e me eram impostos castigos -, meu amigo de cabelos de fogo, Fay Stafford, os sofria comigo. Meus castigos e desgostos não o teriam afligido se eu não existisse em sua vida.
Sua irmã mais velha me disse que eu ainda nem falava bem quando comecei a ir à sua casa para brincar com Fay. Éramos da mesma idade. Ele nascera em fevereiro e eu em abril do mesmo ano e diziam que éramos muito parecidos.
Eu fui profundamente influenciado pela amizade com Fay durante o período formativo da minha vida. Foi ele o primeiro da longa lista dos amigos que enriqueceram e deram calor à minha vida, mas, de todos, não houve nenhum melhor, mais leal do que o meu cabelinho de fogo nas correrias pelas colinas de granito. Escalar as colinas vestidas de neve, era, constantemente, nosso comum e único objetivo. O tempo podia ser nada estimulante para quaisquer atividades fora de casa. Havia, sempre, um sabor doce, de glória, para nós, a laboriosa ascensão ao alto das colinas nevadas.
Num certo sábado, Fay e eu resolvemos escalar a Serra do Urso até onde pudéssemos, durante um curto dia hibernal. Achei que seria preferível não dizer nada a vovó. Apenas dissemos que faríamos uma expedição de dia inteiro. Vovó não fazia objeção a tais andanças, mas ainda recomendou: “Se vocês quiserem escalar morros, meninos, façam-no no verão e não agora, no inverno”! Fay respondeu alegremente:
“As montanhas lá estão senhora Harris para serem escaladas. Mas não seremos Paul e eu que o faremos”.
Sei que vovó não se convenceu, mas que mais podia ela fazer, além de nos recomendar?
Vovó sempre mantinha uma ponta de prevenção com Fay e acho que supunha uma influência restritiva sobre mim, pude perceber isso certa vez, enquanto ela fritava aqueles deliciosos bolinhos, e eu espetei um deles, chiando na frigideira, e o ofereci a Fay, num prato.
Naquele sábado ela nos deu uma boa porção daqueles bolinhos e nos recomendou cuidado e regresso, ainda à luz do dia.
Nosso itinerário usual era ir direto ao Morro do Urso. Wilie Strong e eu, por mais de uma vez, o fizéramos. Mas, por amor à variação, Fay e eu esticamos alguns quilômetros para o norte, aproveitando o dia livre. A escalagem parecia ser mais favorável e teria a vantagem de a tarde estar mais espessa a camada de neve.
O dia prometia favorecer a nossa aventura e, na primeira fase da jornada o foi. Só a temperatura era baixa e fazia doerem as nossas orelhas e narizes. Mas quando foi que um jovem da Nova Inglaterra se deixou vencer por orelhas e narizes frios numa aventura?
Não distante da propriedade de Ed Crary pendemos para oeste, onde havia um marco de pedra e, por dentro do pasto, seguimos a cerca de arame e começamos a subir pelo contraforte da elevação, na direção do Morro do Urso.
Estávamos cientes de ser grandes exploradores, cuja gloriosa expedição, por certo iria fazer parte da história! De diversos caminhos que podíamos escolher optamos por um que nos era totalmente desconhecido. Claro! Que aventura seria, usar um caminho já trilhado!? Colombo não havia desafiado o desconhecido, disposto ao sofrimento, para tornar-se o grande descobridor!?
Assim, enfrentamos a difícil caminhada, alegres, cantando e gritando. Ao meio dia avistamos uma sede velha de fazenda em cujo celeiro trabalharam um homem desgrenhado e uma menina. O espírito de aventura nos levou a chegar para conhecer gente que jamais víramos.
Quando nos aproximamos a ponto de sermos ouvidos, chamamo-los e acenamos com as mãos. O menino respondeu acenando, mas o homem abaixou-se e tomou o garfo de feno e olhou-nos inamistosamente.
“Bom dia, senhor?” Gritou Fay.
“Bom dia; prá vocês”, gritou o homem. “O que vocês querem por aqui?” “Estamos apenas passando e resolvemos chegar. Há alguma mina de ouro aqui por perto? Queremos comprar uma, ou duas”.
“Que nada!” Replicou o homem. “Nem ouro nem qualquer coisa de valor. Somos gente pobre, vivemos de sanduíches de salame e bolas de gelo! Mais neve, no inverno! Vocês não querem bolas de neve?”
“Não, muito obrigado”, eu respondi. “Temos que seguir nosso caminho”.
“Seu caminho, por onde?” – Perguntou. “Por aí”, respondi. “Serra do Urso acima”.
“Melhor não tentar a Serra do Urso num dia como hoje”. “Qual é o problema para o dia de hoje? E um dia claro de sol!”
“E, o sol está bonito, agora, mas vai haver muita neve à noite. E melhor vocês voltarem para suas casas, se é que vocês as têm.”
Dito isso o fazendeiro e o menino retomaram o trabalho e nós sentamos numa velha prancha de madeira e almoçamos os gostosos bolinhos de vovó. Depois, reiniciamos a excursão sem nos preocuparmos com a profecia do fazendeiro. Uma tempestadesinha de neve não seria razão para fazer-nos abandonar o nosso projeto. Nós nos divertiríamos com ela, com a sua mais furiosa investida! Nós, éramos os meninos da “Serra Verde”. Não seria qualquer pé rapado que nos poderia assustar, com tempestades de neve!
E lá nos fomos cruzando pastos e matos. Dentro em pouco, a neve começou a cair e a aumentar de intensidade. Às quatro da tarde, já quase não podíamos enxergar o caminho, mas ainda não estávamos com medo. Não o suficiente para pensarmos em voltar a procura da casa do fazendeiro. Quando pensamos em fazê-lo a neve já havia, apagado a trilha e estava tão escuro, que não podíamos saber por onde estávamos andando.
Naquelas circunstâncias, corremos para uma tapera de celeiro, que divisamos e que fora, a seu tempo, o depósito de feno cortado nas redondezas. Celeiros distantes das sedes das fazendas, naquela época, não eram incomuns.
Rodeamos o rancho procurando a entrada, que foi fácil de encontrar. Dentro do rancho estávamos ao abrigo da neve e do vento, mas não do frio. E a temperatura continuava caindo! Não demorou nada para que nos puséssemos a tremer. O frio nos penetrava até os ossos. Um gambá mais bem vestido que nós fugiu por baixo da soleira deixando-nos, tanto quanto podíamos ver, sós no celeiro.
O que nos agoniava, agora, era a possibilidade de termos de permanecer naquela miserável situação até o dia seguinte, se a tempestade não cessasse logo. Pensávamos na aflição em que ficaria a nossa gente, em casa, e nas recomendações de vovó para que não tentássemos a montanha. Mas havia preocupações maiores. Estávamos sujeitos a uma tragédia e estaríamos sendo objeto de notícias sensacionais no vale. Estaríamos na iminência de sermos vítimas de uma das grandes tempestades de Vermont!
Talvez a história pudesse ser publicada nos livros escolares a fim de que as futuras gerações pudessem aprender o que acontece a garotos sem juízo que não seguem as recomendações das pessoas mais velhas, mais experimentadas e sábias. Tais pensamentos enchiam nossa imaginação. Mas a dúvida que mais nos atormentava era se devíamos enfrentar a tempestade ou permanecer ali, tão mal abrigados. Não sabíamos, no entanto, em que direção seguir, já que a neve cobrira o caminho. Se soubéssemos não teríamos que vacilar. Era voltar, depressa, à fazenda pela qual passáramos antes daquela aflição.
Bem ou mal orientados, decidimo-nos enfrentar a tempestade, de mãos dadas a fim de que pudéssemos nos sentir mais seguros, mutuamente, face a intempérie. Por sorte estávamos de acordo a respeito da direção a tomar, embora nenhum de nós estivesse muito convicto. Embora tivéssemos um curtíssimo horizonte visual, nos apressamos e, dentro em pouco, alcançamos um despenhadeiro que confirmou o nosso medo de havermo-nos perdido completamente. Nada do que encontramos nos indicava a rota para a casa do fazendeiro, que nos admoestara.
E agora? Voltamos ou seguimos noutra direção? Crentes que não encontraríamos mais nem o nosso abrigo recente e nem a fazenda que desejávamos, seguimos em frente. Esperávamos proteger-nos da tempestade sob árvores e nos declives, se os pudéssemos descer. Assim, agarrando-nos nas árvores e arbustos, pesemo-nos a descer pela ribanceira.
Quando chegamos ao fundo encontramos um riacho gelado. Cruzamo-lo e, de alguma forma abrigados do vento; pudemos ver que havia uma faixa de terra margeando o riacho. Podia ser uma trilha e, se fosse, aonde nos levaria? Esperançados, trepamos pela barranca, através de monte de neve sobre pedras emergentes.
Alcançada a trilha, resolvemos seguir por ela até onde pudéssemos, em sentido descendente. Imaginem a nossa alegria quando demos com um pontilhão sobre o leito do riacho, dando-nos a certeza de que estávamos num caminho ladeado de árvores.
Era um lugar desconhecido mas devia haver por perto, nas vizinhanças, gente ou cavalos que usavam o bebedouro.
Parei e fiquei olhando ao redor. O lugar parecia conhecido mas custava-me identificá-lo. De repente, tudo se aclarou e eu pude reconhecer onde estávamos. Com a alegria vibrando n’alma, gritei: “Fay! Esta é a “Gulf Road”. Eu sabia, então, que estávamos a uma légua (seis quilômetros) de casa e que eu conhecia o caminho.
Não podíamos mais perder-nos. Os morros íngremes de ambos os lados indicavam o nosso percurso e as águas geladas do “Arroio Canção” estavam ao nosso lado. Teríamos resistência para caminhar àquela distancia sob a tempestade? Claro! Podíamos e queríamos! Coragem não nos faltava. Além, no vale, estava o amor nos chamando para a luz e o calor das nossas casas. Não éramos os únicos a sofrer com a nossa desastrada aventura. Eu sabia quão ansiosamente vovô e vovó nos esperavam. Se vovô soubesse em que direção poderia encontrar-nos, ele estaria vindo, de lanterna na mão, ao nosso encontro. O pai, a mãe e a irmã de Fay deveriam estar, também, aflitíssimos, à nossa espera.
Fizemos o percurso com dificuldade, parando muitas vezes para descansar e esconder os rostos da tempestade, readquirindo fôlego para mais esforço. Cada passo nos obrigava a levantar os pés para desatolá-los da neve. Os que já experimentaram andar assim podem compreender a valentia com que lutávamos.
Havia um fator favorável. Éramos meninos crescidos nas montanhas da Nova Inglaterra e tínhamos músculos desenvolvidos e rijos pelo hábito de subir os morros e descê-los escorregando. A neve não nos assustava. Era nossa velha conhecida.
Assim, fizemos a nossa caminhada à noite, ladeados pela brancura da neve, pois não havia lua nem estrelas para iluminar o nosso caminho. Em certos lugares o perau estreitava a faixa da estrada, dificultando-nos a travessia.
Afinal, numa curva da estrada, pareceu-nos um brilho, que seria a velha sentinela, Pedra Branca, vigia do nosso vale, a uma milha das nossas casas. Não podíamos ver a Pedra Branca mas sentíamos a sua presença amiga a dizer-nos que estávamos próximos do fim da jornada. O caminho estreitou-se quando vencemos a curva. Havia a largura suficiente apenas para a estrada e para o “Arroio Canção”, sob cujas águas geladas hibernavam trutas, a espera da primavera, para dar-lhes liberdade.
Logo depois acabaram-se os temores, quando pudemos divisar o vulto das casas em que fazendeiros com suas famílias dormiam naquela noite hibernal. Passamos o prédio da escola e entramos na zona das lojas da aldeia, cuja última luz estava apagada, há bastante tempo. Dobramos a esquina do hotel, passamos a casa do Juiz Button e ali, diante de nós, estava a minha casa abençoada! Luzes na sala do lado sul, através da janela, proclamavam que vovô, vovó e Délia estavam aflitos, à nossa espera. Batemos à porta da cozinha que se abriu prontamente e os braços de vovó se estenderam para receber-nos, exclamando, com fervorosa alegria: “Graças a Deus! São os meninos!”
Foi, para vovó e Délia, trabalho de um instante despojar-nos das roupas molhadas. Vovó, como sempre, assumiu o comando da situação: “Não fique aí, como dois de paus, Délia! Ponha lenha no fogo! Abra bem o registro do fogão para esquentar depressa o ambiente. Pai, pegue a bacia amarela e encha-a de água quente. Vou por mostarda nela. Meninos, tirem essa roupa molhada. Passe-me a garrafa de gengibre, Délia. Vou fazer um chá quente de gengibre: Pai, ponha brasas na tampa da panela e esquente a cama de Paul. Vamos pô-los juntos nela. É preciso aquecê-los para abortar os maus efeitos desta tempestade”.
Vovô cumpriu rápido aquelas ordens calçou as botas e acendeu a lanterna para sair pela tempestade.
“Vou à casa de Phon Stafford avisá-lo para vir apanhar Fay”, avisou.
“É uma noite horrível, pai!” Gritou vovó. “Naturalmente é preciso avisar os Stafford, mas Fay deve ficar aqui esta noite. Ele já apanhou muita friagem. Amanhã ele vai prá casa”.
Assim, Fay e eu dormimos juntos aquela noite como fizéramos, anteriormente, muitas vezes. Nossos dedões dos pés ardiam com o calor da mostarda e os nossos corpos chegaram a transpirar pelo efeito do chá de gengibre. Foi esta a última aventura de escalar montanhas para Fay. Ficou com febre à noite e, na manhã do dia seguinte, seu pai levou-o para casa, onde permaneceu de cama por vários dias. Foi proibido, por seu pai, de participar de tais aventuras.
